quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Inseto

A felicidade será sempre ofensiva numa casa abandonada. A formiga come, móveis,  restos, fungos, tinta descascada, concreto, blocos, insetos, sujeira, insegurança. Come a casa inteira e cresce formiga, come. Um material vivo e pulsando, reprimido e deitado, molhado, rasgado, fiapos de roupas, num papelão sendo ator de colchão, e uma noticia velha se disfarçando de cobertor. O cadáver nem esfriou e já está sendo consumido. Come formiga, come, não pergunte o que é, não precisa saber o que é, come.
Assassinato só se torna crime quando é conhecido, então não faz mal, dorme menina, pensa, mas não diz, a formiga come, os dedos percorrem, fios de cabelo, caem, dorme, dorme. Sonha e repete, lembra? Coxas espalhadas, suor, o ar, mãos, peitos, água, lembra? Dorme, pisca, dói. A formiga come, cresce. Não é assassinato quando só se assiste morrer, então não faz mal, dormi menina, dorme comigo, não, acorda levanta e volta, deita e fica agora. Como é ser viúva sem defunto, menina? Lembra? Sente? A formiga come, come, cresce, caem blocos, telhas, o vento varre as nuvens, estrelas caem sem suporte, ossos remexem, órgãos dissecam, alaga o peito, produto dos olhos cerrados.
A formiga come, felizmente triste, pensa, menina, já pensou como seria? O teto inteiro, a bola de fogo passando, e nós, e peles, e olhos, e sopros, e cabelos, mãos, pelos, e pernas, nó entre nós. Já pensou? Pensei, já, e só, pensei. A formiga não come, devora, não cresce, agiganta. Casa sem teto, paredes ou chão.
Só formiga. O monstro da indiferença.

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